AMAR OU ODIAR EM NOME DE DEUS?
Este Movimento Filosófico combate contra todo tipo de religião institucional obscurantista, toda fé que causa cegueira e todo credo que promova o radicalismo que fere, mata ou obstrui o homem e seu pensamento criador. Por isso transcrevemos na íntegra o artigo publicado na revista Conhecimento Prático - Filosofia Nº23, de autoria de Francisco Júnior Damasceno Paiva, como um alerta e um depoimento fidedigno da malignidade propalada pela Religião, sobretudo o cristianismo, ao longo de séculos da História da humanidade.
ÓDIO EM NOME DE DEUS
Ao longo da História, atribuímos o conceito de “religião dominante” ao cristianismo, judaísmo e islamismo pelo grau de influência e poder exercidos por essas religiões no mundo ocidental, e também no Oriente, da Antiguidade ao período contemporâneo. Além disso, estas religiões se encontram em vários elementos, como também em inúmeros episódios de intolerância, embora, muitas vezes, em situações opostas. Muitos pensadores e cientistas sofreram com o
Viés obscurantista: de Galileu Galilei a Salman Rushdie, passando por Martinho Lutero, Dante, Nostradamus, Voltaire e tantos outros, a história se repete: Inquisição, Index, queima de livros, perseguição e morte em nome de Deus. Neste cenário, as oposições às pesquisas científicas e à liberdade de expressão parecem evidenciar, de certa forma, a dificuldade dessas religiões de coexistirem de forma positiva em uma sociedade aberta.
Viés obscurantista
A atitude obscurantista caracteriza- se pela não utilização da razão na busca de soluções para problemas humanos. Temos vários exemplos de obscurantismo, como a queima de livros no incêndio da biblioteca de Alexandria, tema de um dos carros alegóricos da escola de samba Unidos da Tijuca, no carnaval do Rio de Janeiro de 2010.
Embora a intolerância religiosa possa se manifestar em qualquer indivíduo, em qualquer religião, destacaremos aqui apenas essas grandes religiões ou religiões dominantes em que, historicamente, esse tipo de prática se apresenta de forma mais insidiosa e violenta. As consideradas pequenas religiões geralmente são mais vítimas que algozes.
Ao falarmos em um viés obscurantista, entendemos que tais religiões não são, em sua essência, obscurantistas, mas possuem ou desenvolvem certo obscurantismo em determinados contextos ou períodos históricos. Nessa história, a Igreja Católica tem um papel de destaque. Detendo-nos no Ocidente, que é o que nos interessa aqui, podemos pintar um quadro nada animador. A mídia geralmente dá destaque maior à intolerância no Oriente – especificamente o mundo árabe-muçulmano – de uma forma visivelmente ideológica. Eles são “fanáticos”, “irracionais” e “intolerantes”. Nós somos o “modelo do progresso e da razão”. Nada mais equivocado. Intolerância religiosa é a mesma aqui e em qualquer outro lugar do planeta. Igualmente inaceitável em qualquer pessoa ou instituição. E nesse assunto, nós, ocidentais, não somos nem modelo, nem mestres para povo algum.
Concordata No dia 13 de novembro de 2008, o governo do Brasil e o Vaticano assinaram um acordo – denominado Concordata Brasil-Vaticano – cujos termos geraram revolta, pois a constituição do Brasil proíbe a consumação de aliança religiosa entre o Estado e organizações religiosas. Para muitos, o acerto foi uma demonstração de força política da Igreja Católica no Brasil.
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Não vemos, no entanto, o mesmo empenho da mídia em informar a sociedade sobre a concordata assinada pelo governo brasileiro com o Vaticano.
Concordata esta, aliás, aprovada no Congresso com o apoio da bancada evangélica. Esta matéria deveria ter passado por uma ampla e informativa discussão com a população. Outro assunto que merece debate é a retirada dos símbolos religiosos (crucifixos, santos, bíblias, etc.) das repartições públicas, já que, pela Constituição, o Estado brasileiro é laico. Os princípios que deveriam reger as relações entre as religiões e os Estados laicos já foram estabelecidos pelos iluministas e, antes, por John Locke, como veremos a seguir.
Estado Laico
John Locke (1632-1704), filósofo empirista inglês e precursor do Iluminismo, escreveu, em um dos textos mais importantes sobre esse tema, a “Carta Acerca da Tolerância” (1689), que “não é a diversidade de opiniões (o que não pode ser evitado), mas a recusa de tolerância para com os que têm opinião diversa, o que se poderia admitir, que deu origem à maioria das disputas e guerras que se têm manifestado no mundo cristão por causa da religião” (LOCKE, 1978, p. 25).
Neste texto, Locke diz ainda que a intolerância é irracional e anticristã: “A tolerância para os defensores de opiniões opostas acerca de temas religiosos está tão de acordo com o evangelho e com a razão que parece monstruoso que os homens sejam cegos diante de uma luz tão clara” (LOCKE, 1978, p. 4).
Nesse livro, Locke distingue as funções do governo civil e da religião, defende a necessária separação entre Estado e religião e reflete sobre a intolerância. Com a separação entre governo civil e religião, Locke estabelece os princípios que devem reger esta relação e os deveres dos magistrados. Além disso, e o mais importante da carta, ele desenvolve também os princípios da tolerância. Sobre a jurisdição do magistrado, Locke estabelece que ela diz respeito somente aos bens civis e não pode ser de modo algum estendido à salvação das almas, pois: em primeiro lugar, “isso não lhe foi outorgado por Deus, porque não parece que Deus jamais tenha delegado autoridade a um homem sobre outro para induzir outros homens a aceitar sua religião” (LOCKE, 1978, p. 5). Locke diz também que o cuidado das almas não pode pertencer ao magistrado civil, porque seu poder é de natureza coercitiva, ao passo que a “religião verdadeira e salvadora consiste na persuasão interior do espírito” (LOCKE, 1978, p. 5). Por fim, mesmo se a autoridade das leis e da força das penalidades fossem capazes de converter, ainda assim isso em nada ajudaria para a salvação das almas; pois, pergunta Locke, “se houvesse apenas uma religião verdadeira, uma única via para o céu, que esperança haveria que a maioria dos homens a alcançasse, se os mortais fossem obrigados a ignorar os ditames de sua própria razão e consciência, e cegamente aceitarem as doutrinas impostas por seu príncipe, e cultuar Deus na maneira formulada pelas leis de seu país?” (LOCKE, 1978, p. 6).
Em seguida, Locke estabelece os quatro princípios da tolerância que deveriam ser seguidos por todos: indivíduos, igrejas, eclesiásticos e magistrados.
1) Nenhuma igreja é obrigada a manter no seu seio uma pessoa que transgrediu as leis dessa sociedade e, mesmo sendo admoestada, continua a fazê-lo.
2) Nenhum indivíduo deve atacar ou prejudicar outra pessoa nos seus bens civis, porque professa outra religião ou outra forma de culto. E o que vale para os indivíduos serve igualmente para as diferentes igrejas. Sendo as igrejas sociedades livres e voluntárias, elas devem coexistir com a comunidade e com as outras igrejas de forma pacífica e tolerante. Locke defende que o único castigo que compete à autoridade eclesiástica aplicar é a separação e a exclusão daquele que infringiu as leis de determinada igreja.
3) A responsabilidade dos eclesiásticos é maior: “Não é suficiente que os sacerdotes se abstenham da violência, da pilhagem, e de todos os modos de perseguição” (LOCKE, 1978, p. 9); eles são obrigados, enquanto clérigos, “a praticar a caridade, a humanidade e a tolerância. E a acalmar e moderar todo fervor e aversão do espírito que decorrem tanto do veemente zelo humano por sua própria religião e seita como da astúcia incitada de outros contra os dissidentes” (LOCKE, 1978, p. 10).
4) Pela separação entre governo e religião, os magistrados não podem proibir nem impor leis às religiões, desde que estas não estejam atacando os direitos e bens civis dos indivíduos. Segundo Locke, as crenças são de foro íntimo e por isso ninguém pode ser molestado por suas escolhas ou forçado a nada no campo da fé.
Resumindo, o pensamento de Locke sobre a tolerância e sobre a relação entre os Estados laicos e as religiões está baseado no respeito à individualidade das pessoas, à diversidade de opinião e na liberdade de expressão.
Voltaire e a tolerânciaQual a relação entre obscurantismo e intolerância religiosa? Apesar do termo obscurantismo ser contestado por estar ligado ao período iluminista, o adotaremos justamente para assinalarmos a contribuição dos iluministas para a humanidade. Por um lado, vai longe a ideia de que a humanidade caminha para um futuro promissor por meio do avanço da ciência e da técnica. Por outro lado, no entanto, o legado dos iluministas não pode ser totalmente esquecido, sem corrermos o risco de mergulharmos no obscurantismo, no autoritarismo e no irracionalismo.
Voltaire (1694-1778) François-Marie Arouet, o Voltaire, é considerado um dos filósofos mais importantes do Iluminismo. É dele a frase que se tornou um dos lemas do movimento: “Não concordo com uma única palavra do que dizes, mas lutarei até a morte pelo teu direito de dizê-las”, que é também o fundamento da liberdade de expressão.
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A contribuição dos iluministas para a humanidade é imensurável. O filósofo e escritor francês
Voltaire (1694-1778) ícone iluminista, foi perseguido, teve seus livros condenados e escreveu belíssimas páginas sobre esse tema. Além do seu “Tratado sobre a Tolerância” (1762), ele abordou essa problemática também nas “Cartas Inglesas ou Cartas Filosóficas” (1734), em “O Túmulo do Fanatismo” (1736), no “Dicionário Filosófico” (1752) e em “O Filósofo Ignorante” (1766).
Para Voltaire a intolerância religiosa tem como principal fundamento a busca do poder, querer se impor como religião dominante, mas também as superstições e os preconceitos. “(...) É incontestável que os cristãos quisessem que a sua religião fosse a dominante. (...) A opinião deles era que toda a terra devia ser cristã, logo, tornaram-se necessariamente inimigos de toda a terra, até que a terra inteira se convertesse” (VOLTAIRE, 1978, p. 290). Visto que em matéria de religião não existe uma verdade absoluta, mas somente verdades relativas, Voltaire defende que o que garante a paz e a tolerância entre as pessoas é o respeito à diversidade de crenças e religiões: “Se entre nós houver duas religiões, hão de cortar-se o pescoço; se houver trinta, viverão em paz” (VOLTAIRE, 1978, p. 291).
No “Dicionário Filosófico”, no verbete “Tolerância”, Voltaire explica o que entende por tolerância. Ele pergunta: “O que é a tolerância?”, e responde: “É o apanágio da humanidade. Somos todos cheios de fraquezas e de erros; perdoemo-nos reciprocamente as nossas tolices, tal é a primeira lei da natureza” (VOLTAIRE, 1978, p. 290). E ele acrescenta: “Evidentemente que qualquer particular que persiga outro homem, seu irmão, porque não participa das suas opiniões, é um monstro” (VOLTAIRE, 1978, p. 291).
No “Tratado sobre a Tolerância”, escrito mais de setenta anos após a “Carta acerca da Tolerância”, de John Locke, Voltaire trata do caso Calas, um exemplo cruel de intolerância religiosa: Jean Calas, um comerciante calvinista, foi condenado à morte pela acusação de ter assassinado o próprio filho, que pretendia se converter ao catolicismo. Sem provas consistentes, a maioria católica da cidade de Toulouse insufla os juízes a condená-lo. Contra esse crime, Voltaire escreve o “Tratado sobre a Tolerância”, que é um libelo contra todos os crimes de intolerância. Nele, Voltaire escreve: “Não é preciso uma grande arte, uma eloquência rebuscada, para provar que os cristãos devem tolerar uns aos outros. Eu vou mais longe: eu vos digo que é preciso olhar todos os homens como os nossos irmãos. O quê!? Meu irmão, o turco? Meu irmão, o chinês? O judeu? O siamês? Sim, sem dúvida. Não somos todos filhos do mesmo pai e criaturas do mesmo Deus?” (VOLTAIRE, apud ROCHA, 2002, p. 42).
No “Dicionário Filosófico”, Voltaire fala nesse mesmo sentido, porém, é mais duro e incisivo com os que praticam a intolerância religiosa: “Insensatos que nunca haveis podido prestar um culto puro a Deus que vos criou! Desgraçados, que o exemplo dos noachidas, dos letrados chineses, dos parses e de todos os sábios nunca guiou! Monstros que tendes precisão de superstições como o bucho do corvo tem precisão de cadáveres! Já vos foi dito e nada mais há para vos dizer” (VOLTAIRE, 1978, p. 291).
A indignação diante das injustiças e a recusa em aceitar preconceitos e superstições como verdades levaram Voltaire a uma luta incansável e sem tréguas em defesa do homem, da razão e da liberdade; contra o fanatismo, a intolerância e as atrocidades cometidas em nome da fé.
Bertrand Russel e o cristianismoSobre esse caráter belicoso do cristianismo, o filósofo inglês, lógico, matemático e Prêmio Nobel de Literatura de 1950, Bertrand Russell (1872-1970), autor de “No que Acredito”, “Porque não sou Cristão” e “Ensaios Céticos”, escreveu em “Ética e Política na Sociedade Humana” (1977): “É um completo mistério para mim que haja pessoas aparentemente lúcidas que pensem que a fé no cristianismo possa evitar a guerra. Tais pessoas dão a impressão de serem totalmente incapazes de compreender a História. O Estado romano tornou-se cristão ao tempo de Constantino, e esteve continuamente em guerra até que deixou de existir. Os Estados cristãos que o sucederam continuaram a bater-se mutuamente, embora, deva-se confessar, vez por outra lutassem contra Estados que não eram cristãos. Do tempo de Constantino até hoje, jamais houve um vislumbre de evidência de que os Estados cristãos sejam menos belicosos que os demais. De fato, algumas das guerras mais ferozes foram devidas a conflitos entre diferentes tipos de cristianismo. Ninguém pode negar que Lutero e Loyola fossem cristãos; ninguém pode negar que suas diferenças estivessem ligadas a um longo período de guerras ferozes” (RUSSELL, 1977, p. 204).
Nesse mesmo texto, Russell, que era um pacifista, lembra-nos que o único político contrário à deflagração da Primeira Guerra Mundial foi o socialista Jean Jaurès; que não era cristão e foi assassinado com a conivência de quase todos os cristãos franceses.
Segundo Russell, a propaganda cristã inventou casos de intolerância dos maometanos, mas que são inteiramente falsos em relação aos primeiros séculos do Islã. Na verdade, nos primeiros confrontos entre cristãos e muçulmanos, os fanáticos eram os cristãos; e os muçulmanos levaram a melhor. Mesmo assim, ensinou-se a todo cristão o episódio do Califa que destruiu a biblioteca de Alexandria. Mas Russell nos lembra também que, de fato, essa biblioteca foi diversas vezes destruída e por diversas vezes reconstruída. Seu primeiro destruidor foi Júlio César, e o último foi antes do Profeta.
Portanto, nesse caso, não se trata de obscurantismo ou intolerância por parte do Islã. Os primeiros muçulmanos, diferente dos cristãos, toleravam aqueles a quem chamavam “o povo do livro”, desde que pagassem os tributos. Russell nos diz que, no início, o islamismo era conhecido por sua tolerância e isso contribuiu para as suas conquistas. Os cristãos, ao contrário, perseguiam os pagãos e quaisquer outras crenças. Em tempos mais recentes, a Espanha foi arruinada pelo ódio fanático aos judeus e mouros; assim como a França sofreu com a perseguição aos huguenotes. No século XVI, a Europa mergulhou em um mar de sangue, na guerra religiosa entre católicos e protestantes, que teve na França o episódio mais cruel: a terrível noite de São Bartolomeu, na qual os protestantes foram massacrados pelos católicos. No século XX, a perseguição abateu-se novamente sobre os judeus, culminando com o holocausto.
A Intolerância ao longo da História Quase dois séculos antes, Voltaire havia escrito: “(...) Todos perseguidos pelos seus correligionários, antes de Constantino e, mal Constantino faz reinar a religião cristã, logo se opõem os atanasianos e os eusebianos; desde essa época, a igreja cristã inunda-se de sangue até nossos dias” (VOLTAIRE, 1978, p. 290). E ele observa: “De todas as religiões, a cristã é, sem dúvida, a que deve inspirar mais tolerância, embora até aqui os cristãos tenham sido os mais intolerantes de todos os homens” (VOLTAIRE, 1978, p. 291).
Santa Inquisição “O Tribunal da Inquisição foi um instrumento de terror, atraso e obscurantismo utilizado pela Igreja Católica contra todos que divergissem de sua doutrina (os ‘hereges’). Essas pessoas eram submetidas a interrogatórios, durante os quais eram torturadas até confessarem seus crimes (...). Os rituais do julgamento e a execução do réu eram em praça pública, perante toda população” (PILLETI, 1997, p. 41).
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A posição de Voltaire parece exagerada? Vejamos então esta descrição de um desses conflitos no seio do próprio catolicismo: “Na época de Inocêncio III, ganhou força no sul da França uma seita conhecida como catarismo, que negava a autoridade do Papa e o chamava de filho do demônio. Inocêncio III respondeu com fúria ao desafio. Em 1209, convocou uma guerra santa contra a “seita maldita”: aldeias foram queimadas, multidões chacinadas. Para aniquilar o que sobrou do catarismo, Gregório IX, sucessor de Inocêncio III, criou em 1233 a
Santa Inquisição tribunal de clérigos com o poder de acusar, julgar e condenar inimigos da igreja. Com o tempo, o Santo Ofício se espalhou por outros países e passou a perseguir não só cátaros, mas todos que discordassem dos dogmas católicos – judeus, cientistas, homossexuais. As sociedades cristãs se tornaram perseguidoras e teocráticas” (BOTELHO, 2007, p. 64).
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Ciência no Vaticano Sabe-se que o Vaticano levanta-se contra descobertas ou teses científicas que ferem de alguma forma a doutrina do catolicismo. Mas não se pode acusar a Igreja Católica de estar completamente “por fora” do universo científico. A Pontifícia Academia das Ciências desenvolve pesquisas e edita livros. Vários físicos, geneticistas, matemáticos e químicos – alguns deles ganhadores do Nobel – foram nomeados pelo papa como membros ordinários ou honorários da Academia. Veja http://www.vatican. va/roman_curia/ pontifical_academies/ acdscien/ index.htm |
Segundo Heinrich Heine (1797-1856) O poeta alemão Heinrich Heine foi o criador da expressão “a religião é o ópio do povo”, utilizada depois por Marx. Heine foi perseguido em seu país e autoexilou-se na França. Na década de 1930 teve seus livros queimados por nazistas.
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Segundo
Heinrich Heine (1797-1856) a, aqueles que queimam livros acabam queimando homens. A história tem comprovado essa hipótese. No caso da perseguição ao poeta Salman Rushdie, encontra-se logo essas duas tentativas. Desde Platão, que expulsou os poetas da República, a poesia é considerada perigosa pelos regimes absolutistas. A oposição à liberdade de expressão foi sempre utilizada pelas religiões dominantes para proteger seus dogmas e defender seus interesses de poder e hegemonia: “O horror se disseminou com a perseguição promovida pelo Santo Ofício. Com a excomunhão de Martin Lutero, em 1520, a difusão de seus escritos foi proibida pela igreja. Em 1542, o papa Paulo III constituiu a Congregação da Inquisição. Seu sucessor, Paulo IV, criou o temido Index, a lista de livros proibidos. Na Espanha, a ascensão de Felipe II fortaleceu a censura católica. Também na França Carlos IX passou a destruir, pelo fogo, livros perigosos. A perseguição a astrólogos, alquimistas e poetas atingiu o profeta Nostradamus. Seu livro mais importante, “As Centúrias”, de 1555, tem sido sistematicamente destruído desde seu aparecimento” (CASTELLO, 2006, p. 34).
José Saramago Autor de “O Evangelho segundo Jesus Cristo” (1991), o escritor português José Saramago também autoexilou- se na Espanha depois de sofrer perseguição no seu país devido a polêmicas políticas e religiosas causadas por seus livros.
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A literatura, o cinema e o humor são vítimas de perseguições implacáveis: Dante, Zola, Nikos Kazantzakis,
José Saramago ae tantos outros. José Saramago diz que é absurdo que as pessoas não compreendam que ao matarem em nome de Deus, estão transformando Deus em um assassino. De fato é isso o que ocorre; seja por meio de atitudes individuais de intolerância de uma pessoa de uma determinada religião, seja por meio da perseguição exercida por uma religião contra uma pessoa ou outra religião; Deus torna-se inquisidor, perseguidor e intolerante. As religiões “pintam” Deus à sua imagem e semelhança. Segundo Leandro Narloch, o atual papado entende que “o catolicismo é melhor que as outras religiões e só se pode atingir a verdade por ele” (NARLOCH, 2007, p. 28).
A oposição às pesquisas científicas e às novas descobertas é um traço característico do cristianismo. Foi mais forte no período do Renascimento e do Iluminismo, mas continuou durante toda a modernidade e está presente ainda hoje, embora sem muita força, no catolicismo romano. A Igreja Católica é contra as pesquisas com as células-tronco embrionárias. Essas pesquisas já têm ajudado a muitos pacientes e seu avanço contribuirá para o tratamento e a cura de milhares de pessoas que enfrentam graves problemas de saúde.
Da década de 1970 até o atual papado, a Igreja Católica tem optado por dar as costas ao mundo moderno: “Pode alguém estar tão isolado do mundo atual quanto o papa Bento 16? Veja só: ninguém mais discute a importância da camisinha para prevenir a AIDS. Para o papa, porém, os católicos não devem usá-la nem devem transar por prazer. A nossa cultura também reconhece como uma conquista o direito das mulheres de se divorciar e comandar a própria vida, e a tolerância aos homossexuais é um objetivo. Não para o papa, que acha o feminismo bobagem, o divórcio ‘uma praga’ e os homossexuais um problema” (NARLOCH, 2007, p. 27). Além disso, o atual papado comunga com a ideia de um cardeal italiano que afirmou que a “vinda do anticristo se aproxima e que o enviado do diabo estará disfarçado de ecologista, pacifista ou ecumenista” (BOTELHO, 2007, p. 67).
Karl R. Popper Filósofo da ciência nascido em Viena, Karl Popper (1902-1994) escreveu em “A Sociedade Aberta e seus Inimigos” (1945) que “em suma, a atitude racionalista, ou, como talvez possa rotulála, ‘a atitude da razoabilidade’, é muito semelhante à atitude científica, à crença de que na busca da verdade precisamos de cooperação e de que, com a ajuda da argumentação, poderemos atingir a tempo algo como a objetividade” (POPPER apud ROCHA, 2002, p. 94-95). A atitude de razoabilidade de Popper é o mesmo princípio de tolerância de Locke, de Voltaire e de Russell.
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Sociedade AbertaTomamos aqui os conceitos de “sociedade fechada” e “sociedade aberta” propriamente no sentido daquele empregado por
Karl R. Popperaenquanto historicamente eles definem, em parte, as condições da sociedade medieval, moderna e contemporânea, respectivamente. A sociedade aberta de Popper é presidida pelos princípios da razão: “Podemos então dizer que o racionalismo é uma atitude de disposição a ouvir argumentos críticos e a aprender da experiência. É fundamentalmente uma atitude de admitir que ‘eu posso estar errado e vós podeis estar certos, e, por um esforço, poderemos aproximar-nos da verdade’” (POPPER apud ROCHA, 2002, p. 94).
A tolerância religiosa ainda representa um desafio para a humanidade “é preciso, portanto, pensar a intolerância, discuti-la, trazê-la para o centro do debate de tal modo que os resultados das reflexões sejam divulgados, estimulando novas formas de relacionamento entre os homens, marcadas pela tolerância e pela compreensão” (PAULA, 2005, p. 58).
O ideal é que não precisemos mais de fugas para a compreensão da condição humana. Mas, enquanto a humanidade não avança nesse sentido, e uma vez que não alcançamos ainda a sociedade aberta de Popper, convém que sejamos respeitosos e tolerantes com as crenças uns dos outros, inclusive com o direito daqueles que não professam nenhuma religião. Do contrário, confirmaremos a triste observação de Locke: “Tem sido este o curso de eventos comprovados com abundância pela História, sendo, portanto, razoável supor que o mesmo ocorrerá no futuro, se o princípio de perseguição religiosa prevalecer” (LOCKE, 1978, p. 25).
Finalmente podemos dizer que o obscurantismo leva à intolerância e vice-versa. A intolerância é o principal fruto do obscurantismo e, ao mesmo tempo, este último conduz fatalmente à prática da intolerância.
Referências |
BAÉZ, Fernando. História Universal da Destruição dos Livros. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006.
LE GOFF, Jacques. Os Intelectuais na Idade Média. Trad. Maria Júlia Goldwasser. 4ª edição. São Paulo: Editora Brasiliense, 1995.
LOCKE, John. Carta acerca da Tolerância. Trad. Anuar Aiex. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril cultural, 1978.
PILETTI, Nelson e Claudino. História e Vida. Volume 4: da Idade Moderna à atualidade. 11ª edição. São Paulo: Ática, 1997.
ROCHA, Washington Alves da. No Coração de Antígona – Ensaios histórico-filosóficos. Natal: ACE Pinheiro e Alves Editora, 2002.
RUSSELL, Bertrand. Ética e Política na Sociedade Humana. Trad. Nathanael C. Caixeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1977.
VOLTAIRE. Cartas Inglesas ou Cartas Filosóficas. Trad. Marilena de Souza Chauí. Coleção Os Pensadores. 2ª edição. São Paulo: Abril Cultural, 1978.
_______. Dicionário Filosófico. Trad. Bruno da Ponte, João Lopes Alves e Marilena de Souza Chauí. Coleção Os Pensadores. 2ª edição. São Paulo: Abril Cultural, 1978.
_______. O Filósofo Ignorante. Trad. Marilena de Souza Chauí. Coleção os Pensadores. 2ª edição. São Paulo: Abril Cultural, 1978.
_______. O Túmulo do Fanatismo. São Paulo: Martins Fontes, 2006. |
Francisco Júnior Damasceno Paiva é graduado e licenciado (1998) em Filosofia pela Universidade Federal da Paraíba e professor da rede pública de ensino do RN