UMA
ABORDAGEM SEGUNDO O PENSAMENTO DE KRISHNAMURTI
“Eu
sustento que a verdade é uma terra não trilhada e que não a alcançareis por
nenhum caminho, nenhuma religião, nenhuma seita...”.
Essas
palavras foram proferidas por Jiddu Krishnamurti, no dia 3 de agosto de 1929,
ao dissolver a Ordem da Estrela do Oriente, diante de uma multidão que ficou
chocada com tal atitude. Em meio a 2 mil membros da Ordem, estava a sua
mentora, a Srª Annie Besant. Dali em diante, Krishnamurti faria sua busca
sozinho e falaria não a seguidores, mas a pessoas que estivessem dispostas a
ouvir e fazer a mesma busca que ele. Esse fato é relatado em seu livro “Viagem por
um mar desconhecido”, uma coletânea de palestras dadas na Índia, mais
precisamente em Madrasta, Bombaim e Nova Délhi.
Nessa
série de palestras, Krishnamurti trata sobre a acumulação do passado numa mente
que não está livre, pois só se limita a copiar e a imitar os velhos padrões,
buscando inutilmente assim resolver suas questões do presente, como o medo, a
solidão, a frustração, a angústia etc. Ele diz que o ajustamento a um padrão e
a obediência a autoridade exterior e interior (esta também, um resultado da
memória, portanto imitação); que a busca da verdade através de uma religião, de
uma seita, um partido ou um regime político, também conduzem ao já conhecido –
que nunca trouxe paz ou liberdade. Com suas palavras: “Nossa vida atual é toda
a agonia. Confusão, ansiedade, sentimento de culpa, profunda frustração. E, em
vista do tédio, da solidão, do medo existente na vida de cada dia, é óbvio quem
devemos descobrir uma maneira, um estado ou uma existência que não seja de mera
repetição, como a atual”.
Aqui,
tentarei trazer esse pensamento krishnamurtiano para dentro dos ensinamentos e
das propostas da T.H., a fim de que tenhamos uma visão bem clara de como esse
pensador pode ser trabalhado nos nossos estudos de Filosofia Avançada e, em
seguida, aplicado junto aos nossos pacientes. É importante lembrar que a T.H.
tem em pensadores como Krishnamurti o baluarte de suas proposições, pois
considera que tanto nos filósofos ocidentais quanto nos orientais
encontra-se a chave da sabedoria para uma vida plena, posto que foram homens
que se debruçaram sobre as questões da Existência e graças a suas meditações
podemos aplacar o sofrimento que persiste, diminuindo a escuridão que vem da
ignorância e preenchendo o vazio de nossas temeridades. Por isso, começarei
aqui tratando sobre o medo.
Ora,
quem não dirá que o medo é intrínseco a natureza humana? Especialistas em
várias áreas do conhecimento, psicólogos, pedagogos e outros, já se pronunciaram
em favor da necessidade do medo como uma espécie de “instinto de sobrevivência”
– tanto nos animais quanto nos seres humanos. O medo seria então aquilo que nos
daria a medida do perigo, do risco. No entanto, precisamos nos aprofundar nessa
questão do medo para que possamos também estabelecer os seus limites e só assim
compreender a abordagem que faz Krishnamurti quando trata dele. Como, por
exemplo, quando diz: “Desejo que todos os que queiram compreender-me sejam
livres, não para me seguirem, não para fazerem de mim uma gaiola que se torne
uma religião, uma seita. Deverão antes estar livres de todos os temores – do
medo da religião, do medo da salvação, do medo da espiritualidade, do medo do
amor, do medo da morte, do medo da própria vida”.
Logo
vemos que o pensador indiano não trata do medo que realmente temos que ter de
uma cobra venenosa, de uma fera selvagem, ou de cairmos no fundo de um abismo. Ele trata
do medo que temos mas que não se justifica. O medo de não termos uma religião.
Muitos já advogaram que “sem religião, o homem seria um imoral”, como se a
moralidade fosse um dos frutos da “árvore-religião”. Mas sabemos (ou, pelo
menos, deveríamos saber) que ambas, moralidade e religião, são frutos da
cultura, da tradição, portanto da memória – o que Krishnamurti resumirá com a
palavra “imitação”. O ser humano religioso e ignorante provavelmente pensa que
“Deus” só tem olhos para aqueles que professam uma religião e que “Ele”
abandona os que não têm – e isso é o fator do “medo da religião” de que trata
Krishnamurti. Por conseguinte, as religiões advogam o monopólio desse “Deus”
para si – cada uma delas se diz “dona de Deus”, e que só nela há retidão,
moralidade, adoração e salvação, conforme o exigido por “Deus”. Portanto, como
vemos, o medo que está sendo tratado aqui, em Krishnamurti, é um medo que se
destrói tão logo a ignorância é vencida – coisa que não poderíamos afirmar do medo
de um perigo iminente, como estar de frente para uma fera, por exemplo.
Esse
tipo de medo, do qual tratamos aqui, é o que gera a angústia, a depressão, a
tristeza. Aquele que nos paralisa e não nos deixa livres para viver. Então, tememos
a própria vida; tememos também a morte, e cada passo dado na Existência é
acompanhado de um tormento, de um sofrimento. Toda essa tortura existencial
mantém um conflito interior, em nós, mas esse “conflito interior” pode e deve
ser debelado. Porém, como o próprio Krishnamurti diz, isso não será possível
usando as mesmas velhas fórmulas que até aqui falharam, e que apenas se renovam
como cópias, imitações criadas por uma mente embotada, repetitiva e temerosa.
Ele diz: “Os entes humanos não podem continuar a viver como têm vivido, a
matar-se e odiar-se reciprocamente, a dividir-se em nações, em atividades
triviais, estreitas, individualistas, porque por esse caminho o que se encontra
é mais aflição, mais confusão e mais sofrimento. [...] É a imagem egocêntrica
que se identifica com a família, com a nação, com conclusões ideológicas, com
partidos – políticos e religiosos. É esse centro que, dizendo-se em busca de
Deus, da Verdade, impede a compreensão do todo da vida”.
Krishnamurti
nos alerta que não devemos perguntar a ninguém se somos feios ou belos, pois
somente nós podemos saber isso, basta prestar atenção no que realmente somos.
Ele diz que há uma grande responsabilidade nesse “prestar atenção”, e
acrescenta: “Não desejamos prestar atenção, porque temos medo do que possa
acontecer se realmente começarmos a pensar nos fatos reais, diários, de nossa
vida. E, porque temos medo de examiná-los a sério, preferimos viver como
cegos, sufocados, aflitos, desditosos, triviais”. O pensador nos diz que,
quando sentimos medo, tentamos de alguma forma despertar em nós a coragem, mas
não passa de uma “coragem imediatista”, que não destrói nem o medo nem aquilo
que produz o medo, que é a memória do perigo. Então, a coragem imediatista se
contrapõe ao medo imediatista, mas o medo voltará muitas vezes, de várias
formas, ou melhor, nunca terá saído de lá – de lá de dentro de nós. Assim
também os subterfúgios para se obter virtudes, como, por exemplo, a humildade
ou a bondade, ou para fugir a qualquer punição. Diz ele: “Cultivar a humildade
é simplesmente encobrir a vaidade, pois ela é uma virtude, e a virtude não pode
ser cultivada”, e acrescenta: “Quando sois bom por temer punição ou desejar
recompensa, há então um motivo; por conseguinte, isso não é bondade, porém
medo”.
O
ponto marcante nas palestras de Krishnamurti é sua insistência em nos fazer
compreender a relação entre a mente e tempo – sobretudo o mecanismo do cérebro
e todas as suas faculdades, o intelecto, a memória, a imaginação, em relação ao
passado. É claro que precisamos da experiência, e experiência é o acúmulo da memória
transformada em conhecimento evolutivo. Ou seja, é segundo o que já nos
aconteceu e não nos matou que evitamos o mesmo risco; é com a experiência do
prazer que buscamos repetir essa sensação agradável que alegra nossas vidas. No entanto, assim como na questão do medo,
também temos que de nos aperceber até que ponto a experiência é útil ou um
empecilho. Ele nos exorta: “Encontremos uma maneira de viver nossa vida de cada
dia livres da contaminação do passado – sendo “o passado” não só o tempo, mas
também, tradição, experiência, conhecimento, memória”. Com isso ele nos quer
dizer que, preocupados em demasia em evitar o desconhecido (que poderia ser
útil e prazeroso) e apenas acatar o já conhecido (que a experiência, uma vez,
nos mostrou prazeroso, ou pelo menos, sem dor ou sofrimento) deixamos de viver
a plenitude do hoje e, quando nada dá certo, apostamos todas as nossas fichas,
de novo, no amanhã. Mas, diz ele “O amanhã não é uma realidade porque é uma
invenção do pensamento, destinada a dar-nos, psicologicamente, uma certeza de
continuidade, assegura-nos o bem-estar. A realidade é o agora, presente viver.
Mas não podeis viver agora se estais transportando a carga do passado”.
O
pensador indiano advoga que “compreender é agir”. Não há intervalo (tempo) entre
a compreensão e a ação, por isso, quando compreendemos, ou seja, quando
alcançamos uma verdade, mudamos imediatamente – pois, do contrário, não seria
“compreensão”. Precisamos, portanto, compreender que a casa está em chamas e
que tudo está a ruir, e assim não há tempo para ficar fazendo comparações com
algo do passado, da experiência, que está borbulhando na mente – é preciso
agir, agora!
“O
homem que sofre não pensa no amanhã ou na próxima vida; quer uma solução. E, se
não achais tal solução, ficais vivendo de palavras, de crenças e dogmas, que se
tornam vossos meios de fuga!”
Retomaremos o pensamento de Krishnamurti no próximo artigo. Até lá